Acabadinho de chegar das Galinhas, pela última vez na missão, ainda me restam algumas energias para escrever.
Agora que aceitei que aqui se vive em constante estado de emergência, e que percebi como (não) funciona o sistema nacional de saúde, já efectuo evacuações quase rotineiramente. Diz-me o Braima, o Marinheiro, que detenho já o recorde de evacuações.
No primeiro dia de consultas na Ilha das Galinhas, como não podia deixar de ser, aparece um caso bicudo...
Para resumir pormenores, era o caso de uma rapariga que tinha sido submetida a manobras clandestinas de interrupção de gravidez no dia anterior e mantinha-se a perder sangue em grande quantidade. Tinha já repercussão hemodinâmica quando a observei - hipotensão e taquicárdia. Internei a doente na espécie de SO da unidade de saúde, canalizei veia, administrei soros, terapêutica anti-álgica, e continuei as consultas calmamente à espera de ter maré para sair da ilha. 41 consultas para ser exacto, até às 14h30. Levámos a doente para a canoa, recanalizei veia em alto-mar porque o soro deixou de correr (e estranhamente já consigo canalizar veias mais facilmente quando embalado pelas ondas), e acompanhei-a ao hospital.
Apesar de avisar de antemão a nossa chegada por telefone, a ambulância não estava disponível, pelo que chamei prontamente o nosso fiel e dedicado taxista Ocante, e não havia ninguém no serviço de urgência para nos receber. Pela triagem como qualquer outro doente, estivemos à espera de ser atendidos o tempo suficiente para um hipopótamo se esvair em sangue, mas a doentinha lá se aguentou.
Uma típica enfermeira do sistema público guineense (que arrasta os pés e só tem pressa para ir conversar nos corredores) fez a triagem, e disse "está entregue, obrigado". Ao que respondi "Não, não. Chame um médico, se faz favor". Quem conhece o sistema já não é apanhado desprevenido.
Passada outra meia-hora, o médico é localizado e vem ter connosco. Passo o caso e... não existe ecografia de urgência, só na 2ª-feira. Por observação directa, lá chegaram à conclusão que era necessário aspiração.
É feita a aspiração, e aparentemente o útero encontra-se limpo. Diz o médico que já não será necessária a análise de hemoglobina, para saber se é necessária transfusão, e que não é preciso internamento para vigilância, apenas terapêutica em ambulatório. Diz-nos ainda que temos de ir pagar as luvas utilizadas no procedimento.
Pagar luvas? upsss... parece que me esqueci. Mandei o acompanhante da doente à farmácia comprar os medicamentos enquanto íamos fazer a tal análise. Claro que na farmácia do hospital não havia. Hemoglobina de 10,2 g/dL. Perdeu bastante sangue, mas realmente não necessita de transfusão.
Depois de encontrar a medicação, insisti para que a doente ficasse em Bissau em casa de uma tia, para se algo corresse mal, estivesse perto do hospital.
Moral da história, é preciso fazer pressão e não largar para as coisas acontecerem. Só pensava que se a entregasse por completo ao sistema, seria deixada num canto a esvair-se antes de se dignarem a observá-la.
No dia seguinte estava a pé às 6h30 da matina, a partir de Bissau às 8h00, chegar à Ilha das Galinhas às 10h30, ao local de consulta às 11h00, começar as consultas às 12h00 (porque os agentes de saúde também arrastam os pés com muita arte), acabá-las pelas 17h00, ouvir o agente de saúde comunitária queixar-se que estava cansado às 14h00, às 15h00 e às 16h00, chegar à nossa casa às 18h00, dar um belo dum mergulho, jantar, cair na cama, acordar às 6h00 da manhã e ter o melhor despertar nas Galinhas até então, com direito a um mergulho ao nascer do Sol, antes do último dia de consultas.
Valeu por esse mergulho, pelo bife à Loureiro que deu tempo de comer em Bissau, e claro, por esta doente se ter safado.
Posto isto, passo a apresentar as personagens locais.
Começando por quem nos alimenta: a Fatu. Boa cozinheira, sim senhor.
O seu super-poder: perguntar sempre ao pequeno-almoço: "André, que é que no na janta?" (janta=almoço). E perguntar sempre ao almoço: "André, que é no na cia?" (cia=jantar). Apesar da minha resposta incluir carne muitas vezes, 90% das refeições são peixe com arroz... :-)
De seguida, o Homem Comprido, Mustafa.
Aquele lugar entre o Mustafa e as caixas de medicamentos, onde vai esmagada a Fernanda, chefe de missão, é normalmente o lugar do segundo Homem Comprido da missão: eu. Assim nos deslocamos nas Galinhas.
Super-poder: fala pelos cotovelos. Mesmo.
O nosso condutor do jipe: Tio Alfa.
Para os amigos, Tio Manfafa, está aqui retratado com o seu maior amor.
Super-poder: acerta em TODOS os buracos que a estrada tem. Às vezes faz marcha-atrás para ter a certeza que não falhou nenhum.
Up next... Braima, o Marinheiro.
Qual Conan, qual Hulk... O Braima é o verdadeiro homem-forte da equipa. A sua fonte de inspiração é o Tio Banco, um velho eremita que carrega a moto às costas sob o pretexto que ela também precisa de descansar. No entanto, ainda lhe falta algum treino.
Super-poder: sssopinha de masssinha.
O ajudante de marinheiro e cozinheiro oficial das Galinhas: Tu.
Costumo pensar para comigo mesmo que a prevalência de excesso de peso na Guiné-Bissau é o Tu (nascido Valter Afonso). Qual urso de peluche em tamanho grande, a sua boa disposição, mesmo na refilice, é contagiante.
Super-poderes: Cozinha arroz com carne enlatada todos os dias como ninguém, e veste saias bijagôs como ninguém.
Segue-se João Mané, o braço direito do Pedro, técnico de desenvolvimento.
Não pesa mais do que 50kg, mas trabalha na horta que se desunha. Talvez por isso seja tão magrinho... Trabalhou, no tempo da guerra, na messe dos oficiais portugueses onde, conta, fez bons amigos.
Super-poder: só lhe faltam os 4 incisivos de cima para o sorriso Colgate.
Temos 2 guardas-nocturnos. Comecemos pelo Abdulai.
Marido da Fatu, exímio caçador de gazela e cabra-do-mato. Só gostava que ele fosse à caça mais vezes... Certa vez, chegou a acordar-me a meio da noite com um disparo para o ar, para surpreender um ladrão na fábrica de gelo.
Super-poder: Ninguém tem mais cócegas do que ele.
E finalmente... Daté.
Palavras para quê?
Exímio karateca, diz ter aprendido com um mestre guineense, que teve a sua instrução no Japão... Em cima, demonstra o sempre eficaz golpe "Pró caraças ladrão!" E em baixo, um pontapé aéreo que arrumaria até o Bruce Lee.
E é esta a nossa "família" na Guiné. Estamos bem entregues, não?
p.s: O Ocante faz praticamente parte da família, por isso sinto que merece uma foto neste espaço