quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

Até um outro biáz!

O primeiro mês pareceu um ano... O último pareceu uma semana. E esta última semana parece um mês.

Na fase de negação, tudo custa a passar, parece que não se tem os pés bem assentes na terra. Segue-se a revolta, e tudo está mal, tudo tem que ser mudado, e o mundo pesa como nunca pesou antes. A negociação só faz nascer mais cabelos brancos. A depressão, qual sanguessuga, esvazia corpo e mente de toda a energia, até quase se instalar a letargia. Com a aceitação ganha-se novo ânimo, mas a vontade de mudar o mundo sozinho ficou pelo caminho.

Não quero com isto dizer que não valeu a pena. Não quero com isto dizer que sinto que não fiz nenhuma diferença.

Sinto que valeu a pena sempre que penso no dia em que entrei nesta terra vermelho-verdejante como um cachorrinho assustado. Sinto que fiz diferença quando vejo sorrir quem vi a lutar pela vida.

Mas é uma diferença pontual.

Posso no entanto dizer que nem uma só vez violei os meus princípios, e isso, na adversidade, é por si uma vitória.

Passadas 817 consultas, fui chamado "combatente". Não me sinto tal coisa. Sinto-me um "aprendiz".
Em Bolama, não vi um único desalojado. Podem dormir mais de uma dezena debaixo do mesmo telhado, mas ninguém é deixado à chuva. Esta, entre outras atitudes, reflecte uma maneira de estar na vida muito mais humana do que aquela a que nos acomodamos diariamente. Anteriormente, descrevi uma tabanca como "nada mais do que um aglomerado de palhotas". Aprendi que uma tabanca é uma entidade viva, feita de gente que vive em eterna comunhão. Ninguém é abandonado. Ninguém é deixado para trás.
A morte é comum, mas não é banal. É sentida com a mesma dor pela família e pelos vizinhos. A fome é sentida de igual modo por todos, queira a Natureza mostrar-se implacável. E a alegria é partilhada por todos também.

É hora de passar o testemunho. Divido-me entre a saudade de casa e a saudade que já levo deste chão crioulo.

Mas digo com convicção: Até um outro biáz, fijus di terra! Nô sta djunto!


terça-feira, 6 de dezembro de 2011

A equipa local

Acabadinho de chegar das Galinhas, pela última vez na missão, ainda me restam algumas energias para escrever.
Agora que aceitei que aqui se vive em constante estado de emergência, e que percebi como (não) funciona o sistema nacional de saúde, já efectuo evacuações quase rotineiramente. Diz-me o Braima, o Marinheiro, que detenho já o recorde de evacuações.

No primeiro dia de consultas na Ilha das Galinhas, como não podia deixar de ser, aparece um caso bicudo...
Para resumir pormenores, era o caso de uma rapariga que tinha sido submetida a manobras clandestinas de interrupção de gravidez no dia anterior e mantinha-se a perder sangue em grande quantidade. Tinha já repercussão hemodinâmica quando a observei - hipotensão e taquicárdia. Internei a doente na espécie de SO da unidade de saúde, canalizei veia, administrei soros, terapêutica anti-álgica, e continuei as consultas calmamente à espera de ter maré para sair da ilha. 41 consultas para ser exacto, até às 14h30. Levámos a doente para a canoa, recanalizei veia em alto-mar porque o soro deixou de correr (e estranhamente já consigo canalizar veias mais facilmente quando embalado pelas ondas), e acompanhei-a ao hospital.
Apesar de avisar de antemão a nossa chegada por telefone, a ambulância não estava disponível, pelo que chamei prontamente o nosso fiel e dedicado taxista Ocante, e não havia ninguém no serviço de urgência para nos receber. Pela triagem como qualquer outro doente, estivemos à espera de ser atendidos o tempo suficiente para um hipopótamo se esvair em sangue, mas a doentinha lá se aguentou.
Uma típica enfermeira do sistema público guineense (que arrasta os pés e só tem pressa para ir conversar nos corredores) fez a triagem, e disse "está entregue, obrigado". Ao que respondi "Não, não. Chame um médico, se faz favor". Quem conhece o sistema já não é apanhado desprevenido.
Passada outra meia-hora, o médico é localizado e vem ter connosco. Passo o caso e... não existe ecografia de urgência, só na 2ª-feira. Por observação directa, lá chegaram à conclusão que era necessário aspiração.
É feita a aspiração, e aparentemente o útero encontra-se limpo. Diz o médico que já não será necessária a análise de hemoglobina, para saber se é necessária transfusão, e que não é preciso internamento para vigilância, apenas terapêutica em ambulatório. Diz-nos ainda que temos de ir pagar as luvas utilizadas no procedimento.
Pagar luvas? upsss... parece que me esqueci. Mandei o acompanhante da doente à farmácia comprar os medicamentos enquanto íamos fazer a tal análise. Claro que na farmácia do hospital não havia. Hemoglobina de 10,2 g/dL. Perdeu bastante sangue, mas realmente não necessita de transfusão.
Depois de encontrar a medicação, insisti para que a doente ficasse em Bissau em casa de uma tia, para se algo corresse mal, estivesse perto do hospital.
Moral da história, é preciso fazer pressão e não largar para as coisas acontecerem. Só pensava que se a entregasse por completo ao sistema, seria deixada num canto a esvair-se antes de se dignarem a observá-la.
No dia seguinte estava a pé às 6h30 da matina, a partir de Bissau às 8h00, chegar à Ilha das Galinhas às 10h30, ao local de consulta às 11h00, começar as consultas às 12h00 (porque os agentes de saúde também arrastam os pés com muita arte), acabá-las pelas 17h00, ouvir o agente de saúde comunitária queixar-se que estava cansado às 14h00, às 15h00 e às 16h00, chegar à nossa casa às 18h00, dar um belo dum mergulho, jantar, cair na cama, acordar às 6h00 da manhã e ter o melhor despertar nas Galinhas até então, com direito a um mergulho ao nascer do Sol, antes do último dia de consultas.
Valeu por esse mergulho, pelo bife à Loureiro que deu tempo de comer em Bissau, e claro, por esta doente se ter safado.

Posto isto, passo a apresentar as personagens locais.


Começando por quem nos alimenta: a Fatu. Boa cozinheira, sim senhor.
O seu super-poder: perguntar sempre ao pequeno-almoço: "André, que é que no na janta?" (janta=almoço). E perguntar sempre ao almoço: "André, que é no na cia?" (cia=jantar). Apesar da minha resposta incluir carne muitas vezes, 90% das refeições são peixe com arroz... :-)

De seguida, o Homem Comprido, Mustafa.


Aquele lugar entre o Mustafa e as caixas de medicamentos, onde vai esmagada a Fernanda, chefe de missão, é normalmente o lugar do segundo Homem Comprido da missão: eu. Assim nos deslocamos nas Galinhas.
Super-poder: fala pelos cotovelos. Mesmo.

O nosso condutor do jipe: Tio Alfa.


Para os amigos, Tio Manfafa, está aqui retratado com o seu maior amor.
Super-poder: acerta em TODOS os buracos que a estrada tem. Às vezes faz marcha-atrás para ter a certeza que não falhou nenhum.

Up next... Braima, o Marinheiro.


Qual Conan, qual Hulk... O Braima é o verdadeiro homem-forte da equipa. A sua fonte de inspiração é o Tio Banco, um velho eremita que carrega a moto às costas sob o pretexto que ela também precisa de descansar. No entanto, ainda lhe falta algum treino.
Super-poder: sssopinha de masssinha.

O ajudante de marinheiro e cozinheiro oficial das Galinhas: Tu.


Costumo pensar para comigo mesmo que a prevalência de excesso de peso na Guiné-Bissau é o Tu (nascido Valter Afonso). Qual urso de peluche em tamanho grande, a sua boa disposição, mesmo na refilice, é contagiante.
Super-poderes: Cozinha arroz com carne enlatada todos os dias como ninguém, e veste saias bijagôs como ninguém.

Segue-se João Mané, o braço direito do Pedro, técnico de desenvolvimento.


Não pesa mais do que 50kg, mas trabalha na horta que se desunha. Talvez por isso seja tão magrinho... Trabalhou, no tempo da guerra, na messe dos oficiais portugueses onde, conta, fez bons amigos.
Super-poder: só lhe faltam os 4 incisivos de cima para o sorriso Colgate.

Temos 2 guardas-nocturnos. Comecemos pelo Abdulai.


Marido da Fatu, exímio caçador de gazela e cabra-do-mato. Só gostava que ele fosse à caça mais vezes... Certa vez, chegou a acordar-me a meio da noite com um disparo para o ar, para surpreender um ladrão na fábrica de gelo.
Super-poder: Ninguém tem mais cócegas do que ele.

E finalmente... Daté.


Palavras para quê?


Exímio karateca, diz ter aprendido com um mestre guineense, que teve a sua instrução no Japão... Em cima, demonstra o sempre eficaz golpe "Pró caraças ladrão!" E em baixo, um pontapé aéreo que arrumaria até o Bruce Lee.


E é esta a nossa "família" na Guiné. Estamos bem entregues, não?

p.s: O Ocante faz praticamente parte da família, por isso sinto que merece uma foto neste espaço


quarta-feira, 30 de novembro de 2011

O Descanso

É verdade, finalmente houve descanso a sério, em que até deu para fazer de turista. Não vou escrever muito, vou apenas deixar um excerto do registo fotográfico resultante.

A caminho... em estrada de alcatrão!

Canchungo e a sua avenida principal. Um sítio com movimento!

...com multibanco e tudo!

Com bolanhas a perder de vista

...e chapéus bonitos

Um braço de mar com maré-cheia

...e com maré-baixa

Miúdos sempre dispostos a aparecer nas fotos

Caçadores exímios

O forte de Cacheu

onde moram alguns notáveis

e onde houve o Festival Cultural do Caminho de Escravos

Danças importadas

E um pôr-do-sol assim...




Munta buída



Legendary Tiger Lamine

E claro, o convívio! Dois brancos a fazer turismo em Cacheu não passam despercebidos. Aliás, até brilham no escuro. Ainda por cima a malta das ONG parece que se consegue farejar. A FEC (Fundação Evangelização e Culturas) está fortemente presente na região de Cacheu, associados sobretudo à educação. Finalmente falou-se em Português e felizmente não sobre religião!

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Um Domingo como outro qualquer

Depois de uma semana algo inglória, tinha chegado finalmente o Domingo. Aquele dia em que os trabalhadores locais da AMI têm descanso e a casa não tem o reboliço habitual de manhã. Aquele bendito dia em que podemos sonhar uns minutos mais com saudades de casa...
Qual quê? Sérgio, antigo chefe de missão da AMI, de visita a Bolama, perdeu o barco de regresso a Bissau (continuo sem saber como tal proeza foi possível). Toda a equipa foi mobilizada para tirar o motor da canoa de casa, pôr o motor na canoa, pôr a canoa na água, perseguir o Pecixe antes da sua chegada a Bissau e efectuar um transbordo em pleno mar... Deve ser por não haver televisão que as pessoas têm tanta necessidade de fabricar as suas próprias histórias mirabulásticas aqui em Bolama.
Após a toma do pequeno-almoço para recuperar dos trabalhos forçados logo ao acordar, um dia solarengo começa a despontar. Como a chefe não está presente (e espero que ela não leia isto), pegámos nas motos e fomos dar a volta à ilha. Que gozo! Que viagem! Que dia estava finalmente a ser! De tabanca em tabanca circulámos, cumprimentando as gentes ora com um abanar de cabeça, ora com uma buzinadela, ora com um grunhido (forma típica de comunicação guineense). Miúdos gritando ao longe "Branco! Branco Péléle!" Resposta sempre pronta "Preto! Preto Pauauau!" Risos! Sorrisos! Gargalhadas! Visitamos de relâmpago a famosa praia de Ofir, com ruínas de um passeio marítimo do tempo colonial. Regressamos a casa com espírito rejuvenescido e aligeirado.
Hora de encher os bidões de água, porque o senhorio tinha ligado a luz e a bomba de água. Claro que com a distracção de um almoço tardio na varanda, dois homens a governar uma casa acabam por inundá-la. Até a limpeza da piscina criada por engano deu lugar a divertimento.

Noite caída, o Pedro sai para ir buscar Combé (ameijoas do lodo) a uma tabanca por onde passámos, que fica óptimo cozinhado segundo a sabedoria local e uma boa malagueta a realçar o sabor. Volta 5 minutos depois dizendo que alguém está muito doente e a precisar de assistência imediata. Levamos o jipe e encontramos o rapaz trintão já inerte após um episódio agudo de hematemese abundante, segundo história de quem presenciou. Palpo pulso... nada. Respiração... nada. Sem qualquer resposta a qualquer estímulo. Inicio Suporte Básico de Vida? Para quê? Não existem quaisquer meios de ressuscitação no H. de Bolama. Não existem quaisquer meios de Suporte Imediato ou Avançado num raio de talvez 100kms. Tenho apenas as minhas mãos. Acabamos por servir uma vez mais de carro funerário.
Venho a saber que o rapaz tinha apenas sentido uma leve epigastralgia desde o dia anterior, mas que lhe chegava bem na bebericagem, diariamente. Ruptura de varizes esofágicas? Úlcera gástrica com antingimento arterial? Já não interessa saber.

Passo então no hospital para saber qual o estado dos doentes evacuados da Ilha das Galinhas apenas para descobrir que o tratamento prescrito não estava a ser respeitado. Não tendo qualquer protocolo de actuação neste hospital, acabo por eu mesmo de ter que realizar o plano terapêutico dos nossos doentes e de outros mais que tinham chegado. Os enfermeiros, que não se entendem entre eles por falta de coordenação, segundo os próprios, vendo um médico no hospital pedem prontamente ajuda, para uma criança de 6 meses com febre, farfalheira e que se encontra a convulsivar repetidamente e por períodos prolongados, e para uma senhora já idosa com queixas de precordialgia. Não existindo dinitrato no hospital (!!!) ainda tenho de fazer nova viagem com a nossa cabra de mato com o eixo traseiro pendurado por um fio, atravessando Bolama.
Na manhã de 2ª-feira decido evacuar para Bissau o rapaz oriundo da Ilha das Galinhas, por não responder aos tratamentos e não se conseguir chegar a um diagnóstico definitivo. Suspeitava de febre amarela pela marcada icterícia, hepatomegália e hematemese tipo borras de café. Mas o estado do rapaz continuava a agravar-se. Lá fomos nós na nossa servil canoa rumo a Bissau. Posso dizer que canalizar veias e pôr soros a correr em alto mar não é das coisas mais fáceis de se fazer, mas tem o seu encanto...

Hoje é 4ª-feira, dia de preparação da ronda de Bolama. Uma nova esperança me enche o espírito, sabendo que todos estes doentes se encontram estáveis e a recuperar, após uma semana com a maior vaga de mortes desde que cá cheguei, em que confesso que vacilei.


Um pedacinho de paraíso na Ilha das Galinhas

terça-feira, 8 de novembro de 2011

A Lei de Murphy

Esta lei diz-nos que o que de pior pode acontecer acontece realmente. Antes da minha partida para as Galinhas, tenho ainda tempo para contar o que se passou.


Na manhã do dia 07.11.2011, a equipa de desenvolvimento da Missão AMI Guiné-Bissau partiu como previsto para a Ilha das Galinhas. Segundo o plano mensal a equipa médica partiria no dia 09.11.2011.
Na tarde do dia 07.11, a coordenadora de país e o médico de missão receberam um telefonema do técnico de desenvolvimento sobre um doente do sexo masculino e 16 anos de idade que se encontrava em estado crítico, aos cuidados do Enfermeiro Jorge Alves, único na ilha, no Centro de Saúde de Acampamento.
Cinco dias antes, tinha iniciado um quadro agudo de malária, para o qual foi tratado com CoArtem (artemether + lumefantrina) e paracetamol. Teve melhoria clínica mas o seu estado voltou a agravar-se após o tratamento. Foi novamente observado pelo Enfermeiro, que pôs a hipótese diagnóstica de pneumonia e iniciou tratamento com amoxicilina, mas o quadro continuava a agravar-se. Por ausência de meios mais diferenciados, um tratamento de 2ª linha não era possível, e por ausência de qualquer meio de transporte marítimo, a evacuação do doente também não era possível.
No dia da chegada da equipa de desenvolvimento, o quadro era de um doente já com alteração do estado de consciência, que não respondia à medicação. A primeira prioridade era a evacuação do doente, o que apenas seria possível na manhã do dia seguinte, por não existir uma estrutura na ilha que torne os embarques independentes da maré.
Na manhã do dia 08.11.2011, o doente foi então evacuado por via marítima para Bolama de Baixo.
A equipa médica da AMI solicitou o apoio da ambulância disponível no Hospital de Bolama, mas o pedido foi indeferido por más condições da estrada, sendo proposta a carrinha “Pickup” do governador como alternativa. Saída de Bolama às 7h45, a equipa chegaria ao local às 8h30, onde o doente já se encontrava.
A primeira observação pelo médico teve de ser na própria caixa aberta da carrinha, por ser o local que melhores condições apresentava.
O doente apresentava-se obnubilado, não respondendo a estímulos verbais, respondendo com flexão estereotipada a estímulos dolorosos e com abertura espontânea dos olhos – GCS 8/15 – e episódios paroxísticos de agitação motora. Apresentava uma taquicardia de cerca de 120 bpm, taquipneia, uma TA de 150/100 mmHg, e uma temperatura axilar de 35ºC. À auscultação cardio-pulmonar apresentava fervores subcrepitantes bi-basais exuberantes. Realizou-se um teste rápido de malária, com resultado negativo.
Estabeleceu-se como hipóteses diagnósticas:
  1. Sépsis com ponto de partida respiratório
  2. Malária cerebral
Dada a ausência de meios suplementares, por falta de material na farmácia da AMI, (i.e. sistemas de administração endovenosa continuada de líquidos) iniciou-se apenas tratamento com administração única de ceftriaxone 1g intra-muscular e procedeu-se então ao transporte do doente para o Hospital de Bolama, onde seria internado e, ao cuidado do Dr. Dam Zora Namgomté que se encontrava já à espera, iniciaria tratamento com quinino endovenoso e continuaria ceftriaxone 1g/dia.
No caminho de regresso, fomos ainda surpreendidos pela Enfermeira Fatumata da USC de Wato, que pedia “boleia” para uma doente ao seu cuidado, grávida, com suspeita de paludismo e ameaça de parto pré-termo, ao que acederíamos. Devido às más condições da estrada, o caminho de volta foi penoso e causador de sofrimento que esta doente não conseguia esconder.

Presentemente, aguardo notícias sobre a evolução clínica dos doentes transferidos, no entanto, mantenho prognóstico muito reservado para o doente evacuado. Para mais, mesmo após as avultadas doações efectuadas em missões anteriores, o pai do rapaz veio bater à porta da casa da AMI, trazendo a receita do Dr. Dam e dizendo que na farmácia do hospital não existia ceftriaxone…

Actualização da mensagem, agora que voltei das Galinhas e já tomei um demorado duche para limpar os restos de ilha do meu corpo:


O doente evacuado da Ilha das Galinhas faleceu nessa mesma noite de 08.11.2011, e seu corpo foi por nós transportado de volta para a ilha, juntamente com seus familiares. Escusado será de dizer que o ambiente não era de festa...

Chegados à Ilha das Galinhas, outro jovem de 25 anos morreu à mercê do plasmodium, e evacuámos outros 2, presentemente internados no Hospital de Bolama, a efectuar tratamento. No decorrer das consultas diagnostiquei e tratei outros 7 casos.

Não foi uma semana fácil.

domingo, 6 de novembro de 2011

Um, dois, três, vai começar outra vez

Trinta dias, uma caixa de UL-250, uma embalagem de Fucicort e uma tentativa de entrada para o Guinness Book of Records por um número respeitável de picadas de insecto por cm2 de pele depois, cá estou firme e hirto e com uns 3 quilos a menos.
Toda a equipa está já em preparativos para o novo mês de trabalho, que começa com a ida da equipa de desenvolvimento para a Ilha das Galinhas já amanhã. A equipa médica seguirá na 4ª-feira. Porque a canoa da AMI está no estaleiro a fazer aquele lifting com que há tanto sonhava, a viagem vai ser um pouco diferente. Vamos atravessar a ilha de jipe até Bolama de Baixo para apanharmos boleia de uma canoa de pescador. Dizem que esta tabanca é a mais bonita de Bolama, por isso seguirei de máquina fotográfica em riste.
Bom, por ora vos deixo, uma vez que o jantar hoje é fruta-pão frita a acompanhar uma feijoada!

A mi na bai um outro biaz na Dju di Galinha! M' pera qui na curri tudo bem! Até logo!

segunda-feira, 31 de outubro de 2011

Teoria da Relatividade

Bom dia, bom dia!

Kumã bu mansi?

Estamos naquela altura do mês... Altura de vir a Bissau. Quando cá pus os pés pela primeira vez tudo era novo e tudo era 3º mundo. Tudo mudou. Depois de passar 1 mês a tomar banho de caneca e a ter luz só quando o senhorio se lembra que precisa de gelo ou quando ligamos o gerador (quando funciona!), que não pode ser mais que 2 horas por dia por questões de racionamento, depois de passar 1 mês a comer arroz de chabéu com peixe-agulha, arroz de caril com safio, arroz com tainha ou arroz com arroz, Bissau parece a nova Nova-Iorque. Poder ir ao Kaliste comer um delicioso bife com molho de Roquefort, acompanhado de uma Super Bock bem gelada ou ir jantar à Adega do Loureiro um belo polvo à lagareiro regado com Romeira tinto fez-me soltar duas tímidas lágrimas; uma quando o prato aterrou na mesa e soltou o seu aroma, outra quando a última garfada deslizou pela glote. Poder ligar o ar condicionado e estar uns minutos indeciso quanto ao ajuste da temperatura - 26 ou 27º? - poder pegar no chuveiro e temperar a água ao gosto da minha pele, poder carregar num botão mágico que acciona uma invenção há muito esquecida - o autoclismo, poder estar aqui sentado e partilhar este pensamento enquanto fervilha sem estar preocupado com o indicador de bateria que já pisca a vermelho... Todos estes "poderes" ganharam um estatuto de luxo em tão poucos dias.

Bolama tem muito encanto, apesar de ser uma mera sombra do que as quarentonas fotografias, guardadas religiosamente num poeirento álbum de um bolamense saudoso, deixam perceber. Mas Bissau, cidade natal dos Toca-Toca, parece-me agora uma autêntica metrópole. Tudo é relativo.

Hoje já me desloquei ao CECOME para fazer o pedido dos medicamentos e material que teremos que levar para o mês de Novembro e não tenho nada mais senão trabalho administrativo para fazer hoje. Assim, como há tempo para inventar desculpas para não trabalhar, e aproveitando o luxo de ter internet por wifi, deixo aqui o "Manual do Toca-Toca".

Chama-se Toca-Toca porque, uma vez lá dentro, ombro toca em ombro, braço toca em braço, suor toca em suor...
Como apanhar o Toca-Toca:
1º Gritar bem alto quando algum passa, para que os passageiros abram a porta.
2º Correr o mais rápido possível, e preferencialmente pelo meio do trânsito.
3º Saltar lá para dentro, encenando algum episódio da série McGyver ou Esquadrão Classe A, consoante a preferência.
4º Certificar-se que a carreira escrita no exterior é mesmo a praticada pelo condutor.

Após este pequeno interlúdio cultural, ainda vos estou a dever o compte-rendu da ronda de S. João. O jipe atravessou o canal no dia anterior ao início da ronda, já com as caixas de medicação por mim preparadas. A equipa médica todos os dias apanhava a canoa do Tio Buli de manhã, tinha rendez-vous marcado com o Tio Alfa e o seu maior amor, e seguíamos viagem. Gã-Bacar, Gã-Mindjor e Berculom são as tabancas onde a AMI dá consultas.


Pelo caminho, vemos que a escola já começou. O início oficial do ano lectivo foi anunciado no início de Outubro mas na prática só recentemente é que se iniciaram as aulas, apesar de se manterem os problemas de falta de materiais, de falta de ordenados dos professores e mesmo de condições das próprias escolas.


Também foi inaugurada, no passado dia 26/10, a Escola de Enfermagem de Bolama! Espero que tenha sucesso e que dure.

As consultas na ronda de S. João são comparáveis às de Bolama. Apesar de existirem sempre problemas ligados à utilização e ao consumo de águas impróprias, problemas de higiene, desnutrição, malária, não há um volume de doentes exagerado nem casos tão graves como na Ilha das Galinhas. Aqui, as pessoas não estão verdadeiramente isoladas, apesar das deslocações também não serem fáceis. As condições em que vivem e o grau de instrução (embora básico) são portanto superiores.


As crianças são em todo o lado o grupo mais vulnerável. Na Guiné, a mortalidade infantil é astronómica, e segundo o Ministério da Saúde, a principal causa de morte ainda é a malária. No entanto, os acidentes são mais que muitos. Ainda não presenciei nenhum, mas o Pedro, que está cá há cerca de 8 meses, conta pelo menos uma dezena que morreram afogados no canal, afogados em poços desprotegidos, queimados na destilação artesanal do vinho de caju...

Nas tabancas cozinha-se no fogo, no chão à porta de casa, sem qualquer tipo de barreira ou protecção. Como é óbvio, muitas crianças se queimam com brasas ou água a ferver... A fotografia pode impressionar, mas este miúdo teve sorte, apesar de tudo. Já tem a cicatrização quase completa, e sem aparente infecção.


Quantos miúdos já eu consultei com queimaduras destas ou piores? Tenho tudo registado, mas não me atrevo a ir agora contar. Quantos com problemas de higiene, que só precisavam que a mãe lhes desse um banho por dia? Quantos com  problemas de desnutrição porque onde a dificuldade é muita, impera a lei do mais forte?

A vida não tem preço, mas por aqui ainda não tem muito valor também...

Depois da consulta é hora de ir ao mato buscar uma gazela ou uma cabra-do-mato para o jantar, porque Agente de Saúde Comunitária não é reconhecido e não tem salário enquanto a reforma da Saúde não chegar a Bolama (o ministério diz ter todos os fundos alocados à campanha de distribuição de redes mosquiteiras para prevenção da malária. Foi pena não ter dado formação aos ASC de todas as regiões ao mesmo tempo, porque só ficou a faltar Bolama).


E no fim do dia, lá íamos nós esperar pelo Tio Buli o tempo que fosse necessário (recorde estabelecido de 2 horas até agora) para voltarmos para casa, porque a travessia tem que ser rentável pelo número de passageiros, e o descanso entre viagens é fundamental...

Fui o meu próprio barbeiro... Que tal? :)

Bom... isto hoje é uma fartura! Para celebrar, finalizo com mais umas fotografias. Desta vez com uma amostra da fauna nocturna da casa da AMI de Bolama.

Antes eram as Tartarugas-Ninja. Agora é a vez dos Louva-a-Deus!

Batman ou Drácula?


A outra era maior... mas não estava no meu quarto.